No Rio de Janeiro, já no século XIX, a situação também não era muito diferente [utilização de índios na captura de quilombolas], ainda que sua população indígena fosse muito pequena, mesmo a aldeada. A Real Fazenda de Santa Cruz é um exemplo claro de como se poderia utilizar os índios aldeados para ajudar a destruir os quilombos. Em 1822 o Superintendente da Fazenda escreveu um ofício ao Ministro da Justiça comunicando que de acordo com a autorização recebida por ele dada pelo mesmo Ministério, havia pedido aos Capitães Mores das Aldeias de Itaguaí e de Mangaratiba[²], para que junto com seus índios aldeados viessem em socorro da Fazenda a fim de acabar com grupos de escravos aquilombados em suas matas. Desta diligência participaram 91 índios comandados pelos seus chefes e informa ainda o ofício que:
“... A diligência dos índios foi muito bem dirigida pelos seus próprios chefes, apesar das grandes chuvas, que sofreram de dia e de noite com muita constância. Em alimentos para sua sustentação despendeu esta Fazenda em poucos dias, bem perto de 60 mil réis, motivo porque os não demorei por mais algum tempo. Ainda não foram pagos os seus jornais sem outra causa que a de esperar o arbítrio e determinação de Vossa Alteza Real sobre o que cada um deverá ganhar por dia assim tão bem os dois Capitães Mores.” ¹
Não era somente através dos aldeamentos que os índios conseguiam capturar quilombolas. Houve vários casos individuais de indígenas contribuindo para o aprisionamento de escravos fugidos. Em 1770, sob o governo do Conde de Valadares ocorreu um caso interessante. Em agosto deste ano, os índios do grupo Pataxó, Joaquim Barbosa, Manoel da Cunha e outros, todos considerados como civilizados e residentes do distrito da Casa da Casca, prenderam nas matas próximas de suas residências quatro negros quilombolas. Os escravos foram levados amarrados para a cidade, e os índios exigiam o pagamento das tomadias, conforme era a praxe.
Os senhores dos escravos se recusavam a pagar a tomadia alegando que eles não eram Capitães-domato. Por isso, João Seixa da Costa escreveu ao Conde de Valadares pedindo que lhe desse instruções de como proceder, e o avisando que havia recolhido os escravos à Cadeia e que havia feito os índios voltarem ao seu aldeamento com a promessa de que seriam muito bem recompensados pelo aprisionamento dos fugitivos.³
O Conde de Valadares não apenas concordou que os índios haviam feito um excelente trabalho, como também mandou que fossem pagas as tomadias a fim de que os mesmos ficassem satisfeitos. Além disso, mandou o Sargento - Mor estabelecer um corpo com estes índios e outros mais, para que dessem batidas nos matos no sentido de buscarem mais quilombolas e receberem outras recompensas.
Este caso mostra claramente um conflito declarado pelo controle da área pelos quilombolas e pelos índios, levando estes últimos, a melhor. Indica-nos também a apropriação de valores do mundo branco pelos índios. Os índios ao aprisionarem os negros e exigirem a tomadia, na realidade, estavam lidando com valores e conceitos da sociedade que os mantinham submissos. Este serviço de capitão-do-mato poderia ser uma maneira encontrada pelos indígenas de se manterem dentro do sistema montado, já que o seu já estava desarticulado há tempos.
Esta utilização dos índios como Capitães do Mato pelas autoridades aproveitando-se de suas experiências e a vontade de livrar as matas que consideravam suas da presença dos quilombolas, pode ser considerada como um jogo. Analisando detalhadamente a fonte e sabendo como foi o processo de retirada dos índios da região, pode-se observar que se tratava de um mecanismo mais complexo por parte do Governador da capitania. Os índios capturariam os quilombolas da área, deixando-a “desinfestada” e assim os fazendeiros poderiam se instalar na região. Bastava para isso retirar os ditos índios de circulação. Neste momento, entrariam em cena os aldeamentos, no próprio local ou em áreas mais afastadas. Enquanto os elos mais fracos da corrente lutavam entre si, o planejamento de extermínio físico ou ainda cultural dos elementos capazes de impedir a expansão feita pelas autoridades nas possíveis frentes agrícolas seguia seu rumo.
Trecho de um trabalho de Marcia Amantino.
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1. 452 Ofício do Superintendente da Fazenda de Santa Cruz, Manoel Martins do Couto Reys ao Ilmo e Exmo. Sr. Francisco José Vieira, em 9.1.1822 AN Cx. 507
2. [O próprio Martim de Sá fundou a aldeia de Mangaratiba com índios que ele próprio ... ]
3. Carta de João Seixa da Costa ao Conde Valadares em 28.8.70, Arquivo Conde de Valadares (Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos) - 18,3,5 doc. 25
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