A primeira coisa que me despertou a atenção, foi uma sombra humana que avistei junto a uma mesa, a escrever nervosamente; julguei até que fosse o Secretário do Interior do inferno a despachar requerimentos mas, valendo-me da ciência do meu guia, obtive o seguinte esclarecimento:
— Não. Não é o Secretário do Interior, como você pensa; é apenas o espírito de um homem que na terra foi comerciante. Imprevidente que era, vendeu toda a sua mercadoria a prazo e como depois os fregueses não lhe pagaram teve tanto desgosto por ficar sem o seu rico dinheirinho, qua acabou por suicidar-se. Agora, coitado, ali se fica constantemente a tirar contas e como não tem a quem as mandar, sofre as mais cruéis torturas.
Tive muito dó do pobre mas, como nada podia fazer para minorar-lhe o sofrimento, segui em frente. Logo depois parei:
— E aquele outro tipo que ali está, a andar para frente, para trás, para a direita, para a esquerda, como quem não sabe que rumo deve tomar?
— Aquele espírito habitou o corpo de um desses indivíduos que passam a vida hesitando, por incapacidade de tomar resoluções definitivas; em tudo quanto deveria realizar, ora pensa uma coisa, ora outra e deste modo nunca conseguia fazer nada de útil nem para si nem para os outros. Vindo para o reino das trevas interiores, e seu castigo é o que você está vendo: fica ali sem destino, que ir para um lado e não vai, quer ir para outro e não vai, e deste modo sofre horrivelmente. Também havia de ser assim mesmo, concluiu o Diabo Azul. Quem vive hesitando, nunca poderá ir para lado nenhum.
A esse tempo já eu prestava atenção em outra coisa:
— E aquele que lá está, ao longe, rodeado de belas moças e que, no entanto, parece tão nervoso?
— É o espírito de um discípulo de D. João Tenório e que julgava poder enganar impunemente a todas as mulheres. Certa vez, como não conseguisse, com a guitarra de sua voz, conquistara certa belezinha que lhe caíra no gosto, ficou tão humilhado, que arrebentou a cabeça na parede. Aqui recebeu aquele castigo: muitos espíritos femininos o rodeiam, que são lindos de verdade; ele, louco que é por uma conquista, dirige-se a um, faz-lhe tarna confissão de amor e recebe, em resposta, formidável gargalhada sarcástica na cara; dirige-se a outro, a mesma coisa e assim por diante. Castigo terrível, meu caro Quinzinho, para quem se julga indomável e irresistível conquistador.
Depois de haver dado mil graças a Deus por nunca me haver metido a fazer conquistas, prossegui na minha visita.
Prof Wanderley Ferreira de Rezende
trecho do Livro: Gaveta Velha.
Próximo trecho: Quinzinho continua seu passeio pelo Inferno.
Trecho anterior: O Diabo Azul do "Arauto do Sul" é o guia do inferno.
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