Logo, porém, parei de novo, porque, virando-me por acaso pra um dos cantos do quarteirão, dei com um espírito todo entretido, a manejar um desses foles que encontramos nas tendas dos ferreiros. A princípio julguei que fosse ali a tenda do Vulcano, o feiíssimo fabricante de raios e por isso, voltando-me para o meu sábio guia, perguntei respeitosamente:
— Ó meu mestre. A mim será dado saber quem é aquele ilustre ferreiro que com tanta perícia maneja aquele belo fole?
— Ferreiro, nada — volveu-me o Diabo Azul1 soltando uma gargalhada verdadeiramente diabólica — é apenas o espírito de um farmacêutico, homem muito bem, muito caridoso, mas que vivia a receitar a única panacéia de sua invenção, o espeto quente, a todo mundo; vindo, não sei porque, dar com os costados no inferno, ali se fica a aquecer espetos naquela forja de ferreiro.
Comecei a pensar: farmacêutico, homem muito bom, caridoso, mas gostava de receitar espeto quente aos outros... huum... Desconfio bem quem seja ele. Enfim, se for, pobre amigo! Em que andanças se meteu!
Como houvesse o meu olhar caído em uma sombra que parecia pular, pular sem descaso, socorri-me dos conhecimentos do meu improvisado Virgílio, o qual me disse mais ou menos o seguinte:
— O espírito que você agora vê, pertenceu a um homem que sempre viveu cercado de amizade. Quando chegou o seu dia de fazer a última viagem, Deus mandou à terra um anjo, que deveria comboiar-lhe a alma até o céu, coisa que o anjo não conseguiu, apesar de todos os esforços para cumprir sua missão.
— Nada disso, disse ele ao mensageiro celeste. Não vou para o céu nem amarrado.
— Mas, por que não queres ir para o céu? Perguntou-lhe, aflito, o anjo.
— Ora porque! Porque sou apaixonado pelo ali-biba dos sírios e lá no céu não posso tocar minha gaitinha, cantar e dançar. Fico com vergonha de Deus... Quero mesmo é ir para o inferno, porque lá, como é lugar da bagunça, fico em liberdade para fazer o que quiser.
Por mais que o anjo insistisse em demonstrar-lhe as vantagens do céu sobre o inferno e em falar-lhe da beleza do lugarzinho que para ele estava preparado na corte celestial, não houve demovê-lo de seu intento. Veio mesmo para o inferno e aqui passa o tempo alegremente a cantar e a dançar o seu querido alibilbazinho.
Como vice observa, a criatura humana é tão ingrata com o Criador, que às vezes, por causa de prazeres insignificantes e tolos, prefere o inferno ao céu. Também o culpado disso é Deus mesmo, porque deu liberdade a esses bichinhos idiotas que Ele criou e o fato é que, por vontade própria, quase ninguém irá para o céu — terminou o Diabo Azul.
Prof Wanderley Ferreira de Rezende
trecho do Livro: Gaveta Velha.
Próximo trecho: O Diabo Azul e a pena para os suicidas por amor.
Trecho anterior: Quinzinho visita os primeiros infelizes no Inferno.
1. Diábo Azul, pseudônimo do agrimensor e rábula varginense Luiz Alves Rubião, autor de uma série de contos regionais muito interessantes, que publicava no “Arauto do Sul”.
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