Muitos meses eram decorridos desde que fizéramos a última viagem ao Sul de Minas, viagem esta cheia de surpresas e acidentes e na qual tivéramos oportunidade de travar conhecimento com o Venâncio, caboclo sabido e que tinha como cara metade a mais feia possível de todas as caras metades.
Ainda guardávamos, e bem viva, a lembrança da peça que ele nos pregara, zombando do nosso sentimentalismo e da nossa boa fé; porém já não sentíamos o seu eleito e, francamente, ansiávamos por novo encontro com ele. Tanto isto era verdade que, levados por vários motivos alheios à nossa vontade às proximidades da fazenda onde Venâncio residia, resolvemos desviar-nos de nossa rota alguns quilómetros, pedir-lhe pouso e forçá-lo a contar-nos algo interessante acontecido em seu passado.
Nessa decisão não veio sem tempo, porque o sol já tombava no acaso e começava a soprar um ventinho desagradável, quando atingimos uma elevação de onde se avistava, ainda ao longe, a casa que demandávamos. Fizemos uma parada e deixamos que o nosso olhar circundasse por aquela vastidão de terras que a nossa vista podia abranger.
O aspecto da terra era tristonho e sem vida. Por ali se viam apenas capinzais e arbustos avermelhados, sob a tríplice ação da geada, do sol e da poeira; cafezais de folhas secas, que se desprendiam ao soprar do vento e, ao longe, limitando o horizonte, a serra, escarpada e nua, onde se destacava a negrura de grandes blocos de pedra, entremeados de pontos ver-escuros, formados de espaço em espaço por grupinhos de árvores raquíticas, que se equilibravam como por milagre, nas ladeiras íngremes, à borda de precipícios. Vacas magras e tristes catavam pachorrentamente, aqui e ali, algum brotinho de capim que mal começava a despontar dentre as touceiras de gordura torradas pela geada e lá embaixo, por um trilho que cortava o pasto, camaradas sujos, de enxada ou foice no ombro quase nu, regressavam aos seus casebres.
Descemos vagarosamente a ladeira e atingimos a baixada que se estendia até à casa do Venâncio. De longe reconhecemos a diligente Ritinha a recolher a galinhada, enquanto Venâncio tangia para o curral dois ou três bezerrinhos magros e enfezados, talvez pela falta de pasto, ocasionada pela grande seca que assolava a região Sul-mineira.
Em percebendo nossa aproximação, um cachorrinho impertinente começou a ladrar e logo outros se lhe juntaram, para nos receberem com uma orquestra infernal, de latidos ameaçadores. A este tempo, como visse algo ao marido e num instante ambos sumiram lá para dentro: mas logo depois Venâncio reaparecida, de roupa trocada às pressas e, enquanto apeávamos e amarrávamos os cavalos em poste adrede para este fim, do lado de fora do terreirinho muito limpo, ele, que havia reconhecido em nós as suas vítimas de tempos anteriores, veio, todo risonho como sempre, dar-nos o seu abraço de boas-vindas e foi logo dizendo:
— Os senhores não podem imaginar a satisfação que-me causam voltando ao meu ranchinho. Querem saber? Pensei que tivessem ficado magoados comigo por causa daquela brincadeira e cheguei a ficar com remorso.
— Bem vê que se enganou, meu amigo. Na verdade o desenlace da narrativa de suas desventuras nos deixou bastante atrapalhados mas a prova de que não ficamos ressentidos é que aqui estamos de novo, desta vez dispostos a passar a noite e ouvir algum caso interessante dos seus tempos de moço.
— Podem estar certos de que grande é a nossa satisfação em recebê-los em nossa casa: porém casos que lhes possam interessar.... não sei não. Está bem. Vamos entrando, porque aposto que estão fazendo cruz na boca e por isto vou mandar a Ritinha preparar uma jantinha para os senhores.
Bendita notícia esta, porque realmente não havíamos jantado e nosso estômago, exigente como todos os estômagos, reclamava alguma coisa como encher os seus vazios.
Prof Wanderley Ferreira de Rezende
trecho do Livro: Gaveta Velha.
Próximo trecho: O velho boiadeiro e a antiga fazenda da Boa Vista.
Trecho anterior: O desfecho da história do boiadeiro Venâncio.
Comentários