Passado algum tempo, enquanto num morro próximo estava o fogo num roçado e a fumaça toldava a atmosfera quase ocultando a lua que vinha subindo pelo firmamento para cumprir mais uma etapa de sua infindável peregrinação pelo espaço, nós, comodamente assentados, devorávamos uma travessa de tutú de feijão com couve e torresmos e mais meia dúzia de ovos e arroz. Quando demos por terminada a nossa obra de destruição á era noite fechada e Venâncio, prestimoso como todo caboclo da roça, já havia soltado nossos cavalos que, àquela hora, destruíram também boa quantidade de milho que Venâncio para eles pusera num cocho, lá fora do terreiro.
Como a noite se tornara um tanto fria, assentamo-nos à beira de um foguinho, mesmo na cozinha, como era e ainda é de hábito no interior mineiro. Conversamos sobre diversos assuntos, satisfizemos a curiosidade do Venâncio comentando algo do que se passava pelo mundo e depois lhe pedimos que nos contasse algum caso interessante dos seus tempos de tropeiro ou capataz de boiadeiro. Relutou a princípio mas, como insistíssemos, acabou por ceder.
E aqui está o caso que o Venâncio nos contou:
O fato que vou contar-lhes, começou o Venâncio, nada tem de fantástico: trata-se de um caso verídico, acontecido há mais ou menos um 200 anos com um tropeiro, patrão de meu bisavô e que, por tradição de família, chegou até meu conhecimento. Mais tarde, em minhas viagens pelo Sul de Minas, tive ocasião de conhecer, embora já bem modificado, o local onde tudo aconteceu, mais ou menos exatamente como vou contar.
Ao lado esquerdo da estrada que leva de Carmo da Cachoeira à cidade de São Bento Abade, a uns seis quilómetros, para noroeste da Estação do Salto, está situada a fazenda da Boa Vista. É a fazenda mais antiga daquela região, cuja casa primitiva deve ter sido construída lá pelos meados do século XVIII e até à segunda década deste ainda estava de pé o velho casarão colonial, como um fantasma dos tempos idos, a causar à noite, arrepios de medo às crianças e aos caboclos supersticiosos. A poucos passos da casa construída por um dos últimos proprietários da fazenda, ainda se podiam ver, não há muitos anos, e cobertos pelo capinzal e pelas ervas daninhas, os restos dos alicerces reforçados da célebre construção antiga, que teve o seu nome ligado à formação do povoado de Cachoeira do Carmo da Boa Vista, hoje cidade de Carmo da Cachoeira.
Foi fundador da fazenda o Capitão José Joaquim Gomes Branquinho, que foi casado com D. Maria Vitória dos Reis, filha do Capitão Domingos dos Reis e Silva e de D. Andreza Dias de Carvalho e, por conseguinte, irmã do Capitão Manoel dos Reis e Silva, proprietário da também antiga fazenda do Retiro, hoje Couro do Cervo.
No tempo em que aconteceu o caso que estou contando a cidade próxima era São João del-Rei, cuja comarca, denominada Rio das Mortes, abrangia toda aquela vasta região, hoje pontilhada de cidades como: Lavras, Varginha, Nepomuceno, Três Corações, Carmo da Cachoeira e várias outras. E no entanto, plantada em meio às matas e extensas campinas, lá estava, irradiando suas atividades por aqueles sertões afora, a velha e legendária Boa Vista, que chegou a tornar-se sede de um distrito formado por diversas fazendas como: Rancho, Retiro, Abelhas, Campo Belo, Campo Limpo, Rio do Peixe e outras. Um dos poucos núcleos de civilização que havia entre tanta e tantas léguas de terras quase desabitadas, era a Boa Vista o ponto obrigatório para onde convergiam os tropeiros e viajantes que se aventuravam pelas estradas inóspitas, cortadas por entre matas e campinas e que ligavam o leste ao oeste da Capitania das Minas Gerais.
Como quase todas as fazendas antigas, Boa Vista possuía o seu engenho de cana, as senzalas e também a casa do tronco, onde castigavam os escravos rebeldes e fujões; as mucamas, escravas geralmente moças, residiam na casa dos seus senhores e eram encarregadas de serviços caseiros como cozinhar, costurar, cardar, fiar com lá e tecer nos teares de madeira, indispensáveis nas fazendas de outrora. Nas horas vagas, dedicavam-se a intriguinhas e espionagens a serviço das sinhás ou sinhás-moças. O rancho de pouso dos tropeiros e viajantes ficava a um quilómetro, mais ou menos, para leste e até há bem poucos anos, como que por tradição, ainda existia no mesmo lugar um rancho mantido por descendentes dos antigos proprietários da fazenda e que ficava mesmo na encruzilhada das velhas estradas boiadeiras que ligavam Lavras a três Corações e Carmo da Cachoeira a São Bento.
Prof Wanderley Ferreira de Rezende
trecho do Livro: Gaveta Velha.
Próximo trecho: O tropeiro e a história dos Branquinhos e Rezendes.
Trecho anterior: Os viajantes retornam a casa do velho Venâncio.
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