— Pois é verdade, meus amigos, disse o Quinzinho. Segundo me parece, eu nasci para representar no mundo uma espécie de corruptela de Dante. Já, certa vez, fui parar lá na porta do céu, onde fui forçado a servir de secretário do muito ilustre e carrancudo senhor São Pedro; e desta feita fui, com toda a sem-cerimônia, parar nem mais nem menos que no “reino de Plutão escuro”, como disse o Camões.
— Conta, Quinzinho. Conta como foi que isso aconteceu — pedimos a uma-voz.
E o Quinzinho, sem se fazer rogado, começou a sua narrativa:
Imitando o poeta florentino, posso dizer-lhes que: "Como entrei, não sei; era cheio de sono àquele instante em que da estrada real me desviei!". Para melhor compreenderem a minha estória, e antes que me perguntem, vou dizer-lhes que, se ali me encontrava, perdido em meio àquela medonha “selva selvagia” que ante mim se estendia a perder de vista, era porque, pouco antes, por uma tolice qualquer, eu me havia suicidado.
Eis-me, portanto, a caminhar sozinho por aqueles tremendos caminhos que pareciam nunca chegar ao fim e temeroso de ver surgir, a impedir-me os passos, a medonha fera que há algumas centenas de anos tanto medo causou ao pobre Alighiere, naquela mesma solidão em que agora me encontrava. Tal porém, não se sucedeu e assim continuei a minha viagem em meio ao profundo silêncio apenas interromído pelo doce murmurinho da folhagem de árvores gigantescas, tocada ao de leve pela vibração suave que passava.
Cheguei, finalmente, à porta do reino de Satã onde como outrora o grande Alighiere, "Ovídio escritte, in colore escuro”, estas palavras que o fizeram voltar-se para o seu guia e exclamar:
Por mim se vai das dores à morada,
Por mim se vai ao parecer eterno,
Por mim se vai à gente condenada;
......................................................
No existir, ser nenhum a mim se avança,
Não sendo eterno ou eternal perduro:
Deixai, ó vós que entrais toda a esperança!
Não oculto que, principalmente aquele “Deixai, ó vós que entrais toda a esperança!” me deixou bastante temeroso e até um tanto arrependido da terrível aventura em que me metera; entretanto, por outro lado, respirei satisfeito por haver terminado minha longa viagem sem maiores incidentes e, despedindo-me do mundo dos vivos, aldrabei violentamente a grande e negra porta que dá entrada para aquele mundo estranho onde, segundo a Bíblia, só há prantos e ranger de dentes.
Prof Wanderley Ferreira de Rezende
trecho do Livro: Gaveta Velha.
Próximo trecho: O Diabo Azul do "Arauto do Sul" é o guia do inferno.
Trecho anterior: Os beatos e a justiça de São Pedro.
Comentários