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O cachoeirense Quinzinho chega ao Céu.

... e o Quinzinho começou assim a sua narrativa:

Não me será necessário procurar grande rodeio para dizer-lhes que morri, como também não lhes direito o que se passou com o meu espírito logo que escapou de sua residência material, porque os que já morreram o sabem com todos os pormenores e os que estão vivos o saberão um dia, infalivelmente. Por isto mesmo vou apenas dizer-lhes que, no exato momento em que a minha pobre carcaça era atirada ao fundo do buraco de sete palmos, meu espírito batia palmas à porta do céu e pedia licença a São Pedro para ir entrando. Confesso que meu espírito que, de modo geral, é calmo e bastante confiado, havia perdido de todo as estribeiras ao chegar perto daquela porta enorme, atrás da qual devia estar vigilante o enérgico e carrancudo guarda-chaves do Criador; e quando São Pedro, abrindo um pouco a entrada do Paraíso fitou em mim o seu olhar duro e penetrante, não tive nenhuma dúvida em compará-lo ao horrível Cérbero, tal e qual no-lo pinta o poeta inglês em seu grande poema "O Paraíso Perdido".

Pouco depois travava-se entre meu espírito e São Pedro o seguinte diálogo:

— Afinal, quem é você e o que quer aqui?

— Saiba Sua Santidade que eu sou Quinzinho, um humilde...

— Sua Santidade? Que tratamento é esse?

— Perdão, Senhor São Pedro. Eu disse Sua Santidade, porque os papas lá na terra são assim chamados; e como sempre ouvi dizer que São Pedro foi papa...

— Ora, tolices, seu Quinzinho. É verdade que dizem que fui o primeiro papa, mas no meu tempo ainda não haviam inventado esse negócio de Sua Santidade, Sua Eminência, etc., etc., e por isso todos me chamavam simplesmente de Pedro. Mas, vamos ao que interessa. Que ocupação era a sua lá na terra?

— Eu era guarda-livros, Senhor São Pedro.

— Formado ou prático?

— Formado pela Escola "Carlos de Carvalho".

— E quem era o diretor dessa Escola?

Eu disse o nome do Diretor e fiquei admiradíssimo quando São Pedro, em acabado de ouvir minha resposta me disse prazerosamente:

Ah! Sim. Conheço muito bem o Melo. É uma boa pessoa, boa mesmo até demais, porém tem um defeito: é muito irônico e por esse motivo, quando morres, não poderá vir diretamente para o céu; irá para o purgatório e, se abusar um pouco, o inferno o aguarda com todas as honras.

Temendo pela sorte que aguardava no outro mundo a alma de meu velho e presado amigo, humildemente roguei a São Pedro que tivesse piedade e não a fizesse sofrer por coisa tão mesquinha como é a ironia; mas São Pedro, que não gosta de ser contrariado, lançou-me um olhar tão mau, que comecei a tremer e a verdade é que, naquele momento, da salvação da alma do amigo, para somente, egoísticamente, cuidar de salvar a minha. Porém São Pedro, que já havia retomado o seu ar bonachão de pescador de almas, convidou-me a entrar, dizendo:

Entre, seu Quinzinho, e não precisa ficar triste porque seu amigo Melo, conforme proceder daqui para frente, virá também para o céu; mas, em castigo daquelas ironias causticantes, das quais nem eu nem você escapamos, vou obrigá-lo a criar aqui uma escola igual à que ele arranjou na terra. Aqui não há guarda-livros e eu estou muito velho e casado para fazer todo o trabalho que me é exigido pelo meu antigo companheiro de pescarias no mar de Tiberíades. Quanto a você, pode ficar já a meu serviço. É o meu secretário.

E foi assim, meus amigos, que tomei posse e assumi as funções no meu novo e inesperado emprego. No princípio, tudo corria às mil maravilhas e eu estava satisfeitíssimo; mas a minha alegria não devia durar muito tempo. Caramba! O diabo queria ser secretário de São Pedro. Quanta amargura, quanta decepção não se tem lá na porta do céu! Sim, porque o que lá se observa é que muita gente que aqui na terra é tida por criaturas santas, almas predestinadas, ao chegar à porta do céu passa pelo desgosto de ser enviada ao diabo, ao passo que muitas outras, tidas como pecadores, irreligiosas e perversas, tem o seu lugarzinho preparado na corte celestial.

Vou contar-lhes porquê e como foi que escapuli do céu.

continua...

Prof Wanderley Ferreira de Rezende

trecho do Livro: Gaveta Velha.

Próximo trecho: Os beatos e a justiça de São Pedro.
Conto anterior: A noiva do tropeiro.

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