Que susto e que alegria não experimentei ao mesmo tempo quando a porta foi aberta, fazendo aparecer aos meus olhos admirados um soberbo panorama que, entretanto, era ainda apenas uma espécie de vestíbulo do imortal Satã! Tive um susto, porque afinal — que diabo! — uma alma não é de ferro e eu não sabia ao certo o que irira acontecer-me naquelas paragens que tanto receio costumam causar aos covardes habitantes da terra; mas o meu susto transformou-se logo em contentamento, ao verificar que o porteiro do inferno era o ... Diabo Azul1.
— Aquele Diabo Azul que publicava no “Arauto do Sul”, de Varginha, uns contos regionais muito interessantes?
— Exatamente. Eu já o conhecia de vista lá na terra e, ao dar de topo com ele no inferno, disse cá com meus botões: — Estou aqui, estou feito: eu finjo-me de Dante, o Diabo Azul de Virgílio e tudo me correrá bem.
Assim pensando, dirigi-me logo a ele dizendo:
— Ó tu, que é, como eu, um dos quel lá na terra peregrinaram encarnados e que, por conseguinte, deves conhecer a fraqueza, a ignorância das criaturas humanas: sê o meu guia, o meu cicerone nestas regiões que me são desconhecidas e, como outrora o grão mantuano conduzindo o ilustre florentino explicava-lhe tudo aquilo que lhe era estranho e escuro, inicia-me tu também agora nos mistérios da vida que aqui se vive.
— E, tá certo, respondeu-me ele, consertando com ambas as mão a laçada de sua velha gravata vermelha, já em princípio de decomposição. O meu tempo, depois que fui designado porteiro cá da zona é muito pouco, porque a todo momento aqui chega alma que quer entrar e preciso estar sempre atento, para que não se quixem de encontrar má vontade por partes dos servidores do nosso reino, como se queixam da casmurrice do velho porteiro do céu. No entanto, por não me tornar descortês, deixei por algum tempo o serviço entregue ao nosso velho amigo L. Melo, que aliás merece toda a confiança e assim poderei acompanhá-lo e explicar-lhe algumas das coisas extraordinárias que há nos domínios do meu poderoso soberano.
— Ora, meus amigos, outro qualquer que não fora eu, certo se admiraria ao saber que o Melo estava no inferno; eu, porém, não me admirei porque, baseando-me em certas ameaças contra ele e que ouvi de São Pedro quando de minha estada no céu, já supunha que esse meu prezado amigo se encontrasse mesmo a ferver na caldeira do Pedro Botelho; por isso mesmo não liguei maior importância ao fato e passei adiante.
Agora, meus amigos, fiquem atentos porque vou narrar-lhes a minha visita a um dos quarteirões em que se divide o inferno e de tudo quanto vi e ouvi lhes darei fiel conta e se tanto me ajudar o engenho e arte.
Prof Wanderley Ferreira de Rezende
trecho do Livro: Gaveta Velha.
Próximo trecho: Quinzinho visita os primeiros infelizes no Inferno.
Trecho anterior: O cachoeirense Quinzinho chega ao Inferno.
1. Diábo Azul, pseudônimo do agrimensor e rábula varginense Luiz Alves Rubião, autor de uma série de contos regionais muito interessantes, que publicava no “Arauto do Sul”.
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