Entretanto, mesmo que os quilombolas fossem identificados como sendo “inimigos capitais”, havia um outro elemento, segundo as autoridades, com muito maior capacidade para levar à ruína a colônia. Tratava-se da própria população livre que o alimentava e através de seus exemplos, conduzia os cativos aos desvios:
"... O dano maior que considero no caso que os negros se levantem não é tanto das conseqüências que isto pode produzir, como do terror pânico dos brancos que com a menor coisa se desanimam e é sem duvida que por isto não é de pouca ponderação a matéria porque ainda que os negros não tenham ordem nenhuma, e por isso seria menos durável a sua sublevação: o medo dos brancos podia causar maior desordem, e dar aos outros maior atrevimento para o que ajuda muito as consciências gravadas, o concubinatos, e os malefícios deste país que clamam ao léu pelo seu castigo, e quando Deus o quer dar aos que merecem não busca meios estrondosos, mas serve-se daqueles que aos olhos humanos parecem mais desprezíveis..."1
Para o autor, os negros, ainda que rebelados, não possuiriam condições de provocar danos irreversíveis à sociedade e, por conseguinte, à escravidão, porque eram inferiores aos brancos e não tinham condições de se manterem organizados. O perigo real estava no seio do grupo senhorial e dos homens livres e em função de seus próprios problemas e fraquezas, eles estariam colocando a segurança e o progresso da colônia em risco.
Os cativos, neste discurso, não tinham elementos civilizatórios suficientes para se estruturarem de forma significativa e destruir a sociedade. Os danos causados pelos negros deixavam, portanto, de fazer parte de um contexto sócio-econômico e se tornavam um castigo divino. Com esta explicação era retirado dos escravos fugidos a possibilidade deles se rebelarem e agirem enquanto agentes históricos possuidores de uma consciência e de vontades. Tratava-se de um castigo da ordem do divino e não dos homens. Portanto, a solução estaria dentro da própria sociedade: bastaria acabar com os elementos de desordem e de desapego à fé e, consequentemente, a Deus e este não mais castigaria a população usando os seres “mais desprezíveis”.
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1 Carta do Conde D. Pedro de Almeida, Conde de Assumar para Ouvidor do Rio das Mortes, em 24 de março de 1719. APM SC 11. P. 118,118v.
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