O manuscrito de Januário Pinto Moreira - que teria ouvido a história de seu mestre, o Padre Caturra - as narrativas voltam-se para o século XVIII. Isto, porém, não significa que Carmo Gama não tenha também colocado seus valores e sua visão de mundo do final do século XIX no relato que ora temos em mãos. A Lenda Quilombola resgata vários elementos presentes na documentação do século XVIII, e através do discurso de Gama percebe-se algumas continuidades importantes para identificar a compreensão que a sociedade tinha sobre os escravos e, principalmente, sobre os quilombolas.
A segunda questão-problema que surge ao lidarmos com este tipo de fonte é a veracidade dos fatos apresentados. Como identificar no emaranhado de informações prestadas pelo texto aquilo que realmente ocorreu, a opinião de Carmo Gama, o que foi escrito por Januário P. Moreira , o contado por Caturra e o que seria senso comum? Esta questão apresenta-se bastante complexa, mas o real problema não está localizado na falsidade ou na veracidade dos fatos, ou em quem contribuiu com uma determinada informação. O que vai condicionar e fazer diferença é o uso que se faz do texto e, em que medida, este apresenta ou representa imagens sobre o cotidiano da população de quilombolas. Pois, concordando com O’Gorman, ainda que uma lenda ou história possua elementos que não sejam verdadeiros, “...não impede que contenha uma interpretação do acontecimento a que se refere...”
Assim, o importante é resgatar estas interpretações e perceber como elas podem auxiliar o entendimento maior sobre quilombos e quilombolas, já que o imaginário de uma sociedade é um locus privilegiado para um historiador. É nele que, de uma forma ou de outra, grande parte do cotidiano de uma população fica registrado, ainda que com variadas nuanças.
Se houve realmente algum tipo de relação entre jesuítas expulsos e quilombolas é algo que até hoje não foi resgatado e talvez não o seja nunca. Mas, é curioso imaginar o que teria acontecido com inúmeros religiosos que foram constantemente proibidos de permanecerem nas minas, mesmo antes de 1759. Eram homens com posses, donos de escravos e quase sempre controladores de grupos indígenas. Era muito comum na região que pessoas envolvidas em algum tipo de desentendimento com as autoridades fugissem levando tudo o que podiam para o sertão. Quem melhor que os religiosos para buscarem uma nova vida nestas áreas, já que estariam sendo auxiliados pelos índios que “administravam”?
Entretanto, esta é apenas uma indagação que não nos cabe responder. A importância da fuga dos jesuítas, no momento, é que ela serviu de pano de fundo para uma história que resgatou algumas tradições quilombolas. Dentre estas tradições, pode-se citar a questão da liderança do quilombo, a alimentação do grupo, a forma de organização interna e social, práticas cotidianas, entre outras.
Trecho de um trabalho de Marcia Amantino.
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